O TEMPO, A CIDADE E OS OLHARES por Álex Kalil e Bruno Mussil

Álex Kalil
Bruno Souza da Silva Mussil



A cidade de Nova York (Internet)
A cidade constrói um dos fenômenos mais representativos da experiência sociológica. É no lençol de relações emergidas das cidades que laços de socialização são feitos e desfeitos, acelerados, brutalizados e experienciados gerando atitudes de indiferença e anonimato dentre outros sintomas sentidos principalmente pelo avanço do capitalismo, alterando as relações de poder e as interações dos indivíduos.
Uma das chaves de compreensão da realidade social das cidades se encontra na subjetividade, ou seja, o modo como o universo de significações atuam no coletivo a partir da interação. É assim que encontramos ao analisar as cidades dois grandes campos de atuação da análise científica: o Físico, atuante no corpo e portanto no espaço que ocupam os indivíduos e o Subjetivo, atuante na realidade cotidiana, no intelecto e no tempo dos mesmos. Embora ambos estejam intrinsecamente ligados, aqui nos ocuparemos de analisar os aspectos subjetivos que atuam no cotidiano das cidades, logo, a esfera do tempo.
O tempo pode ser percebido por diversos sentidos humanos, mas sem dúvida o olhar é o responsável pelas grandes descobertas ocidentais e onde se realiza a máxima subjetiva do indivíduo: o pensar por si mesmo de Kant (1980). De que maneira o pensar por si mesmo atua na âmbito público no interior das cidades contemporâneas?
Na obra  “A invenção do cotidiano” Michel de Certeau nos demonstra a importância do olhar na vivência da cidade. “A vontade de ver a cidade precedeu os meios de satisfazê-la”, afirma o autor. Assim, em sua análise do World Trade Center o olho que vê sob o alto do grandioso edifício é um olho distanciado, elevado, que recusa-se a descer (recusa o “down”), pois neste está a realidade. Lá embaixo encontra-se o ordinário controlando o corpo pelas vias que constituem o “texto urbano”. Este é um texto diferente, um texto difícil de ler quando o cotidiano toma conta dos sujeitos, alienando-os, cegando-os (CERTEAU, 1994). Porém, pode ser que este cegamento não seja total. Os sujeitos acessam o mundo através principalmente das  interações mediadas através das mídias eletrônicas,  que implica em uma larga escala de informações (THOMPSON, J. B: 2011).  Além das instituições,  que,  segundo Cornelius Castoriadis (1982),  atuam na relação dos imaginários com a psique dos indivíduos.  
A mídia eletrônica é um objeto importante na obra do filósofo e sociólogo Paul Virilio se dedicou a investigar o desenvolvimento das sociedades urbanas dentro do sistema tecnológico avançado, onde a velocidade, a informação e as redes têm um papel determinante. O autor toma como premissa argumentativa a estratégia obtida pelas novas guerras no ocidente, onde o que ganha a guerra é também aquele que possui maior domínio sobre a velocidade.
  Para Virilio a Hipervelocidade ou aceleração total é uma velocidade ocorrida pelo aceleramento extremo da tecnologia, de modo que toda relação que constitui a troca de dados, imagens, sons ou textos mediada pelos  dispositivos eletrônicos e, portanto, inaceitáveis em um espaço físico. Essas relações não ocupam um lugar, pois sua velocidade acaba por desconfigurar ou desmanchar a sua própria materialidade, o que faz com que este fluxo não tenha um limite e isto, para o autor, permite que o capitalismo assume uma nova estratégia de metas para o consumo.
O antropólogo Marc Augé também se preocupou com a problemática da transformação do tempo com o seu conceito de “não lugar”  no qual a interação é inexistente e o tempo resume-se em passar à vista, em somente “ir”, não, “estar”. Isto seria fruto de um aceleramento da história, uma superabundância de acontecimentos que gera uma produção de informação em larga escala, onde o sujeito diante deste volume de informação e com a necessidade de atribuir sentidos a estes, cria uma individualização de referências, lendo e se informando apenas com aquilo que lhe interessa. É este o “texto urbano” complexo que Certeau problematiza ao olhar do alto do World Trade Center.
Ao olharmos para este redimensionamento do mundo físico para o mundo cibernético, é perceptível o abuso desta tecnificação do mundo e como ela convém para a inviabilização da práxis política. Dito de outro modo, com o tempo, esta velocidade extremada acaba por desprender os fatos históricos, transformando os acontecimentos em um mero banco de dados informacional. Richard Sennett (1997), também, se preocupa com a praxis política e o ser cívico na contemporaneidade em “Carne e pedra”. Nesta obra, identificamos os muitos desafios que a cidadania se depara no mundo em que vivemos, pois, diferentemente da clássica definição do que é o ser cívico - como em Roma, por exemplo, onde ser cívico significava reconhecer a existência de um destino comum - na cidade contemporânea o “cívico” deve conviver com a diferença num mundo onde a cidade multicultural multiplica-se progressivamente e apresenta aos indivíduos as duras demandas deste convívio. O diferente, portanto, separa, exclui e distância. Afinal, conviver, ou mesmo, interagir com o diferente é, antes de tudo, um obstáculo social, ideológico, espacial e, como Sennett nos mostra, corporal. O corpo cívico proposto por Sennett, somente será possível se mudarmos esta concepção de corpo, onde não há o que nos una. O caminho proposto por Sennett para que os corpos se identifiquem enquanto cidadãos é reconhecer o que lhes é comum, seja a “dor” ou mesmo a compaixão religiosa, aspectos abandonados quando o conhecimento científico-racional passa a vigorar e valorizar-se.
Sendo assim, o corpo do indivíduo contemporâneo é um corpo individual, que apenas “passa”, não interage, e até mesmo não “vê”, não “percebe” e, se o faz, é com efemeridade devido a hiperaceleração.
Aqui, retomando a temática do tempo e do olhar voltamos a Virilio, investigando “o olhar” em sua obra.  Para ele:
O ponto de fuga, centro onipresente do antigo olhar em perspectiva, dá lugar à instantaneidade televisada de uma observação prospectiva, de um olhar que transpassa as aparências das maiores distâncias, dos mais vastos espaços. Nessa experiência final do espaço que subverte a ordem de visibilidade surgida no Quattrocento, assistimos (ao vivo ou não) a uma espécie de teleconquista das aparências que prolonga o efeito da luneta de observação de Galileu (VIRILIO, xxxx, p.23-24).  


Para Virilio não há imagens autônomas . A imagem virtual, a imagem mental dentre outras formas do imaginário não se separam da imagem física e biológica. Elas formam uma só imagem que atuam nas faculdades morais kantianas de cada indivíduo e estas por sua vez determinam a interação individual e social dos sujeitos. Criando assim uma nova cultura no conjunto dessas relações sociais, porém, muito mais dirigidas pelas imagens mentais dos fluxos do mundo cibernético, com representações ideais  e publicitárias que ocultam o tempo real e as complexidades do mundo político.
Concluímos portanto que o pensar por si mesmo kantiano está passando por uma ruptura ou transformação com os avanços tecnológicos ocorridos na sociedade contemporânea. A sociologia urbana e seu método de análise das subjetividades do mundo podem nos ajudar a compreender como este conceito histórico da filosofia está se transicionando e se transformando ao se chocarem com os impactos do capitalismo e do desenvolvimento tecnológico nas cidades.


Referências Bibliográficas.


CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
CERTEAU, Michel de. Caminhadas pela cidade. In: A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994.São Paulo: Loyola, 2000.
KANT, Immanuel; Crítica da razão pura. 1980.
SENNETT, Richard. Corpos Cívicos. In: Carne e Pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro, Record, 1997.

THOMPSON, J. B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia.  Petrópolis: Ed. Vozes, 2011.
VIRILIO, Paul. A cidade superexposta. In O Espaço Crítico. Rio de Janeiro: Ed. 34. 1993

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