Por Bruno Mussil
Neste artigo da série "Resenhando o Brasil" abordaremos a Introdução e o capítulo A dominação pessoal da obra de Maria Sylvia de Carvalho Franco, importante marco na sociologia brasileira quando o assunto é o período colonial e sua sociabilidade, dando enfase às figuras subjetivas que a autora nos apresenta para mapear as relações sociais do antigo regime no país.
FIGURAS SUBJETIVAS E TIPOLÓGICAS DA SOCIEDADE ESCRAVOCRATA
Um olhar para os “serviços residuais” do homem livre e pobre na ordem escravocrata. Isto é o que orienta o olhar de Maria Silva de Carvalho e Franco. E nesse caminho a autora trata de nos demonstrar importantes aspectos da sociabilidade da época através de algumas figuras subjetivas como: o tropeiro, o vendeiro, o sitiante, o agregado e o camarada.
O vendedor de leite - Jean Batiste Debret |
O tropeiro, segundo a autora é a mistura de dois elementos fundamentais: “tecnologia rudimentar e grande empreendimento mercantil”. Esses elementos tornaram a figura do tropeiro essencial para a circulação na economia brasileira, pois eles representam sujeitos que percorriam longas distâncias com mercadorias diversas para comercializar.
Além disso, os tropeiros possuem outras categorias como, por exemplo, a do negociante de animais (indivíduos que se aventuravam Brasil adentro com inúmeros animais para comercializar). Esses negociantes possuíam pouca relações pessoais para com grandes fazendeiros, pois suas interações eram intermediadas pela lógica de mercado, tornando-as breves, efêmeras, mas de extrema importância para garantir a existência do tropeiro, uma vez que ambos (tropeiro e fazendeiro) interdependiam-se mutualmente. A figura do condutor de tropas, também merece aqui um breve destaque enquanto tropeiro, pois era o responsável por transportar as mercadorias, ou bens, produzidos em grandes caravanas com a ajuda de mulas e escravos e requeria grande capacidade logística por parte do condutor (FRANCO, 1997).
A importância da circulação, portanto, àquele momento na economia e sociedade brasileira era tanta que os tropeiros tornaram-se os agentes sociais mais próximos das elites rurais e urbanas, o que lhes permitia uma mobilidade social exclusiva. Foi essa mesma circulação a responsável por criar o complexo “fazenda-rancho-venda”, pois os tropeiros em suas viagens se deparavam com as vendas - estabelecimentos rudimentares que continham alimentos ou mesmo serviam de pousada para a caravana (FRANCO, 1997). Aqui, conseguintemente, surge a figura do vendeiro, ator com extrema fluidez que “tanto se ligava às camadas dominantes, como se aproximava dos estratos inferiores” (FRANCO, 1997, p. 78). Tal fluidez garante ao vendeiro uma posição marginalizada oriunda do sentimento geral de desconfiança em
torno de sua figura, pois torna-se próximo tanto de homens (proprietários) quanto de coisas (escravos).
Outra figura importante é a do sitiante, pois sua análise revela um aspecto estrutural primordial sobre a sociabilidade da época: o compadrio. O apadrinhamento “quebra as barreiras sociais entre as pessoas por ela ligadas” (FRANCO, 1997, p. 84). Ou seja, a relação entre padrinho e afilhado aparenta ser a mais equilibrada possível socialmente, uma vez que o padrinho (geralmente de grande valia social e de posses materiais) assume a responsabilidade por orientar o afilhado no jogo da vida. Tal equilíbrio é mantido pelo mútuo reconhecimento de padrinhos e afilhados (fazendeiros e sitiantes) como pessoas, como humanos, o que faz do compadrio uma dominação entre semelhantes. Uma dominação com traços específicos de dependência econômica como garantia de fidelidade política e subsistência. Depender suas condições de existência, portanto, tornam duráveis e contínuas as relações entre sitiantes e fazendeiros (ao contrário do que vimos acima na relação de tropeiros e vendeiros com os fazendeiros). Porém, vale ressaltar que a dominação pessoal resultante dessa dependência é um dos grandes motivos “para a asfixia da consciência política” (FRANCO, 1997, p.89). Em outras palavras, os sitiantes eram homens políticos limitados pela dependência.
Por sua vez, a figura do agregado caracteriza o morador em terra alheia. Geralmente entendidos na imagem do caipira, esses sujeitos viviam em terras improdutivas cedidas pelo proprietário do terreno e, frequentemente, buscava na tradição caipira um retorno ao passado para manter seu estilo de vida. Além disso, a relação entre proprietário e morador era de amizade, caso contrário a permanência desse último à terra alheia não seria possível. Porém, vale lembrar que uma relação de amizade não significar uma relação isenta de dominação e sujeição, pois agregados e camaradas não tomavam decisões autônomas (FRANCO, 1997). Dessa maneira, o camarada, por sua vez, é o sujeito que se integra no estrato econômico e social superior e perde as características de caipira, mas continua dominado pelo proprietário, pois este último confere valia e reconhecimento para agregados e camaradas apenas quando estes servem seus interesses pessoais.
Por fim, todos os elementos aqui levantados em torno dessa figuras subjetivas revelam fatos importantíssimos sobre a sociabilidade durante grande parte do século XIX. Destarte, circulação, fluidez, brevidade, amizade, compadrio, dominação pessoal, sujeição, moralidade, tradição, respeito, confiança, fidelidade, dependência, reconhecimento ou desprezo explicitam-se claramente nas interações típicas dos sujeitos e traduzem a intensa e complexa teia de sociabilidade do Brasil na ordem escravocrata.
Referências bibliográficas
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Introdução e A dominação pessoal. In: Homens livres na ordem escravocrata. 4ª. Edição. São Paulo: Ed. Unesp, 1997.
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