Para
instaurar-se completamente numa sociedade particular, o capitalismo precisa,
evidentemente, de diversas condições histórico-sociais e materiais garantidas e
estruturadas. A emergência de uma sociedade de classes é uma delas[1].
Ilustração: André Tachibana / Internet |
Florestar
Fernandes nos ajuda a entender como este processo ocorrera no Brasil e,
particularmente, como o negro pós-abolição fora apresentado a então ordem
competitiva que surgia diante de seus olhos. Afirma Florestan:
A desagregação do regime escravocrata e senhorial se operou, no Brasil, sem que se cercasse a destituição dos antigos agentes de trabalho escravo de assistência e garantias que os protegessem na transição para o sistema de trabalho livre. Os senhores foram eximidos da responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos sem que o Estado, a Igreja ou outra qualquer instituição assumissem encargos especiais, que tivessem por objetivo prepará-los para o novo regime de organização da vida e do trabalho (FERNANDES, 2008, p.29).
Ou seja,
os escravos libertos foram deixados à própria sorte, completamente perdidos
diante da nova sociedade que emergia; perdidos consigo e entre si, o liberto
tornou-se “responsável por sua pessoa e por seus dependentes, embora não
dispusesse de meios materiais e morais para realizar essa proeza nos quadros de
uma economia competitiva” (ibdem, p.29). A própria competição era injusta, uma
vez que o Brasil importava mão de obra branca europeia, preferida aos cargos
tipicamente industriais/operários. Isso fica claro no processo de urbanização e
industrialização em muitas cidades brasileiras. Florestan Fernandes volta seu
olhar para a cidade de São Paulo, nos trazendo dados estatísticos e
qualitativos acerca da condição supracitada do negro liberto.
Afirma o
autor que “as próprias condições psicossociais e econômicas, que cercam a
emergência e a consolidação da ordem social competitiva na cidade de São Paulo,
tornavam-na imprópria e até perigosa para as massas de libertos, que nela se
concentravam” (Ibdem, p.35). Obviamente, tais condições permitiram a
institucionalização do racismo nas posições de classe na estrutura social
brasileira. Dessa forma, classe e raça são em Florestan assuntos que devem ser
abordados juntos, uma vez que a cor da pele influencia estética, material e
moralmente sua posição na ordem classista e competitiva do nosso capitalismo.
Além disso, o gradiente de cor é também significativo quando pensamos na vida
política brasileira, mais especificamente, quando falamos em democracia.
A maneira
como a democracia surge no Brasil também é analisada por Florestan, sobretudo
noutra obra: “Mudanças sociais no Braisl”. Nela, o autor tenta responder uma
pergunta intrigante: “existe uma crise da democracia no Brasil?”.
Segundo
Florestan, a democracia no Brasil precisa, essencialmente, constituir-se como
valor sociocultural, porém, para tanto, uma série de obstáculos devem ser
superados. E ele lista tais obstáculos. Um deles é a organização da sociedade
colonial e imperial no Brasil (uma sociedade de castas, patriarcal, que criava
um sistema de direitos e obrigações sociais). Nela, vemos que “a dominação
patriarcal se inseriu em uma sociedade em que o direito de mandar e o dever de
obedecer se achavam rigidamente confinados, concentrando o poder na mão de um
número restrito de cabeças de parentelas” (FERNANDES, 2008b, p.99). O resultado
dessa organização de nossa vida política resultou no desinteresse do nosso povo
sobre a política e no costume do exercício de poder como privilégio das classes
dominantes, segundo Florestan Fernandes. O negro, portanto, no processo de
formação da democracia brasileira, também fora desconsiderado enquanto ator
político capaz de absorver e compartilhar os valores democráticos; destarte,
vemos que, no Brasil, a questão racial, a classe e a vida política, são
triplamente desfavoráveis ao negro brasileiro por conta do “abandono à própria
sorte” na gênese de nossa sociedade de classes e de nossa democracia.
Para além
dessa relação entre a questão racial e a democracia, Florestan também nos
aponta outros diagnósticos interessantes acerca de nossa vida democrática.
Sobretudo no que tange à importância dos partidos políticos e a educação como
ferramenta significativamente integradora. Acerca do primeiro diagnóstico:
(...) os partidos políticos não tem outra alternativa senão a de adotarem técnicas racionais de arregimentação de uma ideologia definida e, principalmente, de realização dos fins inscritos em uma plataforma de ação política. É dos resultados dessa evolução dos partidos, que está em processo incipiente, que depende grandemente o futuro da democracia no Brasil e, em particular, a estabilidade do poder Legislativo (FERNANDES, 2008b, p.106).
Os
partidos políticos são essenciais à democracia brasileira, portanto, pois são
peso fundamental para consolidação em nível ideológico e de práxis dos valores
democráticos. Para Florestan, àquele momento, bastar-se-ia consolidar o caminho
trilhado pelos partidos políticos para alcançar uma experiência democrática
mais efetiva.
No
tocante à educação como ferramenta integradora, Florestan Fernandes (2008b, p.
113) afirma:
(...) as possibilidades de manipular a educação como uma técnica de criação ou de controle de ajustamentos e de valores políticos democráticos dependem, fundamentalmente, da organização do sistema educacional brasileiro tendo em vista necessidades educativas de alcance nacional, que no entanto não foram atendidas até o presente. Parece que nesta esfera, se colocam argumentos fortemente contrários às reflexões melancólicas sobre as incertezas da democracia no Brasil.
É sabido
que a educação é uma das responsáveis pelo processo de formação cidadã das
pessoas; portanto, é com este sentido que a democracia depende necessariamente
da educação, com a finalidade de garantir valia aos processos democráticos
legítimos.
Por fim,
podemos concluir que os inúmeros desafios da vida pública brasileira resistem
ao tempo (e ao espaço). E Florestan Fernandes consagra-se como referência ao
demonstrar a gênese dos inúmeros problemas (de classe, raciais e democráticos)
que cercam nossa sociedade.
Referências
Bibliográficas
FERNANDES, Florestan. A
Integração do Negro na Sociedade de Classes. São Paulo: Editora Globo, 2008.
_________________. Mudanças
sociais no Brasil. São Paulo: Editora Globo, 2008b.
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho.
Introdução e A dominação pessoal. In: Homens livres na ordem escravocrata. 4ª.
Edição. São Paulo: Ed. Unesp, 1997.
[1] É curioso lembrar que no Brasil a ordem
escravocrata foi palco criador de inúmeras excentricidades que compunham uma
intensa e complexa teia de sociabilidade, como nos mostra Maria Sylvia de
Carvalho Franco (1997), e que representam peso e barreira significativa na
transição para uma sociedade de classes competitiva.
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