Imagem: Coletivo Di Jejê / Reprodução Internet |
O
poder perpassa toda a sociedade na qual vivemos, tanto como macropoder quanto
como micropoder (FOUCAULT, 1979). Com os movimentos progressistas não seria
diferente. As relações de poder aparecem no campo progressista das maneiras
mais variadas de práxis, de pensamento, de ideologia, de vivência, experiências
e percepções dos atores envolvidos, pois a complexidade dos sistemas de
opressão estruturantes de nossa sociedade é tamanha, que ignorar (mesmo não
intencionalmente) a ligação entre certas demandas de grupos dupla ou
triplamente oprimidos torna-se um problema relevante para a maneira como tais
grupos buscam o sonho de uma sociedade menos desigual e menos preconceituosa. É
com a intenção de explicitar a conexão entre as formas de opressão que surgem
os estudos sobre a interseccionalidade.
Segundo
Rodrigues (2013) os anos 1970 marcam o renascimento do ativismo social
brasileiro. Vemos surgir importantes movimentos anti-racistas e feministas que lutam
num contexto de busca pela redemocratização, mas que não abarcam em suas
reflexões, e ações, as formas de opressão internas que interligam racismo e
sexismo (no caso do Movimento feminista) e racismo e gênero (no Movimento
Negro), por exemplo, e que reforçam a dominação entre os grupos. Tal descaso
para com a conexão de nossos sistemas opressores afetava (e ainda afeta),
principalmente, as mulheres negras. Contudo, por volta dos anos 1980 e 1990,
inúmeros artigos produzidos por militantes negras marcam a introdução da
interseccionalidade nas práticas e reflexões desses grupos a partir da
influência de autoras feministas negras anglo saxãs, pois a dificuldade de
refletir sobre interseccionalidade não era uma particularidade unicamente
brasileira.
Kimberlé
Crenshaw (2002, p.177) define a interseccionalidade como “uma conceituação do
problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da
interação entre dois ou mais eixos da subordinação”. Além disso,
o conceito de interseccionalidade, como foi originalmente formulado, permite dar visibilidade às múltiplas formas de ser “mulher” sem cair no reducionismo de um princípio unificador comum mas sem, contudo, resvalar para um relativismo que desloca as relações de poder envolvidas nas diversas formas de opressão, transformando-as em mero objeto de disputa discursiva (RODRIGUES, 2013, p.6).
A
mulher negra, portanto, representa a forma mais pura de interseccionalidade;
isto é, as nossas categorias de opressão e diferença agem sobre as mulheres
negras com uma intensidade díspar. A interseccionalidade nos mostra que tais
categorias da diferença interdependem da existência de outras formas de
discriminação; logo, não é possível tratá-las separadamente. Temos, portanto,
um novo modelo metodológico para análise e compreensão das forças opressoras:
A
partir da análise dos modelos teóricos acima, a afirmação de Audre Lorde de que
“não há hierarquias de opressão” ganha sentido e representação no modelo
teórico da interseccionalidade (figura 2). Deixamos, portanto, de olhar para as
forças opressoras como pesos verticais de discriminação (figura 1) e passamos a
enchergar tais forças como interdependentes. Em suma, a lição que aprendemos
com este modelo é que as forças opressoras relacionam-se entre si; e uma
análise respeitável deve levar isso em consideração quando nos debruçamos sob a
vida material e societária de mulheres, principalmente.
No
Brasil, o conceito de interseccionalidade custou a ser aceito pelo nosso
ativismo político. Cristiano Rodrigues (2013) nos aponta três motivos
possíveis: a) o foco do movimento feminista na democratização, que lidava com
um tipo específico de “ser mulher” (branca, classe média, ocidental e
heterossexual); b) a apropriação que feministas brancas brasileiras fazem das
teorias produzidas noutras regiões, relegando a discussão sobre as relações
entre racismo e sexismo apenas às mulheres negras; e c) a ausência
significativa de mulheres negras na academia brasileira como pesquisadoras ou
docentes.
Acrescentaremos
um quarto motivo, aproximando a escolha política das feministas brasileiras em
não falar da interseccionalidade entre racismo e outras forças opressoras com o
conceito de harmonia racial, de Gilberto Freyre e “homem educado”, de Oracy
Nogueira.
A
obra de Gilberto Freyre (1996) , como é sabido, transmite a ideia de que o
Brasil é o palco das relações harmoniosas entre as diferentes raças e etnias.
Tal pensamento incrustou-se em nossa própria noção de brasilidade. E Oracy
Nogueira (1985), por sua vez, nos mostra que no Brasil, em vista das
influências do pensamento freyreano e de outros autores ensaístas brasileiros, falar
em racismo é sempre de mal tom, pois fazê-lo põe em cheque nosso consenso em
evitar conflitos diretos de cunho racial. Vemos que isso ocorre também no campo
progressista. Evitar a interseccionalidade aponta certo reconhecimento desse
mito das relações harmoniosas das raças por parte do próprio ativismo político
brasileiro.
Referências
Bibliográficas
CRENSHAW,
K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação
racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p.
171-188, jan. 2002.
FOUCAULT,
Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
FREYRE,
Gilberto. Casa grande & Senzala. Rio de Janeiro, Editora Record. 1996.
Nogueira,
O. (org.) Tanto preto quanto branco: estudos de relações raciais. São Paulo,
T.A. Queiroz; 1985.
RODRIGUES,
Cristiano. Atualidade do conceito de interseccionalidade para a pesquisa e
prática feminista no Brasil. Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais
Eletrônicos), Florianópolis, 2013.ISSN 2179-510X.
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